25 de outubro de 2010

Alegre tristeza


Se eu disser pra você que hoje acordei triste, que foi difícil sair da cama, mesmo sabendo que o sol estava se exibindo lá fora e o céu convidava para a farra de viver, mesmo sabendo que havia muitas providências a tomar, acordei triste e tive preguiça de cumprir os rituais que faço sem nem prestar atenção no que estou sentindo, como tomar banho, colocar uma roupa, ir pro computador, sair para compras e reuniões – se eu disser que foi assim, o que você me diz? Se eu lhe disser que hoje não foi um dia como os outros, que não encontrei energia nem pra sentir culpa pela minha letargia, que hoje levantei devagar e tarde e que não tive vontade de nada, você vai reagir como? Você vai dizer “te anima” e me recomendar um antidepressivo, ou vai dizer que tem gente vivendo coisas muito mais graves do que eu (mesmo desconhecendo a razão da minha tristeza), vai dizer pra eu colocar uma roupa leve, ouvir uma música revigorante e voltar a ser aquela que sempre fui, velha de guerra. Você vai fazer isso porque gosta de mim, mas também porque é mais um que não tolera a tristeza: nem a minha, nem a sua, nem a de ninguém. Tristeza é considerada uma anomalia do humor, uma doença contagiosa, que é melhor eliminar desde o primeiro sintoma. Não sorriu hoje? Medicamento. Sentiu uma vontade de chorar à toa? Gravíssimo, telefone já para o seu psiquiatra. A verdade é que eu não acordei triste hoje, nem mesmo com uma suave melancolia, está tudo normal. Mas quando fico triste, também está tudo normal. Porque ficar triste é comum, é um sentimento tão legítimo quanto a alegria, é um registro de nossa sensibilidade, que ora gargalha em grupo, ora busca o silêncio e a solidão. Estar triste não é estar deprimido. Depressão é coisa muito séria, contínua e complexa. Estar triste é estar atento a si próprio, é estar desapontado com alguém, com vários ou consigo mesmo, é estar um pouco cansado de certas repetições, é descobrir-se frágil num dia qualquer, sem uma razão aparente – as razões têm essa mania de serem discretas. “Eu não sei o que meu corpo abriga/ nestas noites quentes de verão/ e não me importa que mil raios partam/ qualquer sentido vago da razão/ eu ando tão down...” Lembra da música? Cazuza ainda dizia, lá no meio dos versos, que pega mal sofrer. Pois é, pega mal. Melhor sair pra balada, melhor forçar um sorriso, melhor dizer que está tudo bem, melhor desamarrar a cara. “Não quero te ver triste assim”, sussurrava Roberto Carlos em meio a outra música. Todos cantam a tristeza, mas poucos a enfrentam de fato. Os esforços não são para compreendê-la, e sim para disfarçá-la, sufocá-la, ela que, humilde, só quer usufruir do seu direito de existir, de assegurar seu espaço nesta sociedade que exalta apenas o oba-oba e a verborragia, e que desconfia de quem está calado demais. Claro que é melhor ser alegre que ser triste (agora é Vinícius), mas melhor mesmo é ninguém privar você de sentir o que for. Em tempo: na maioria das vezes, é a gente mesmo que não se permite estar alguns degraus abaixo da euforia. Tem dias que não estamos pra samba, pra rock, pra hip-hop, e nem pra isso devemos buscar pílulas mágicas para camuflar nossa introspecção, nem aceitar convites para festas em que nada temos para brindar. Que nos deixem quietos, que quietude é armazenamento de força e sabedoria, daqui a pouco a gente volta, a gente sempre volta, anunciando o fim de mais uma dor - até que venha a próxima, normais que somos.

Martha Medeiros.

Sensível que dói


Ser sensível nesse mundo requer muita coragem. Muita. Todo dia. Esse jeito de ver além dos olhos, de ouvir além dos ouvidos, de sentir a textura do sentimento alheio, tão clara, no próprio coração. Essa sensação, às vezes, de ser estrangeiro e não saber falar o idioma local, de ser meio ET, uma espécie de sobrevivente de uma civilização extinta. Essa intensidade toda em tempo de ternura minguada. Esse amor tão vívido em terra em que a maioria parece se assustar mais com o afeto do que com a indelicadeza. Esse cuidado espontâneo com os outros. Essa vontade tão pura de que ninguém sofra por nada. Esse melindre de ferir por saber, com nitidez, como dói ser ferido. Ser sensível nesse mundo requer muita coragem. Muita. Todo dia. Essa saudade de fazer a alma marejar de um lugar que não se sabe onde é, mas que existe. Essa possibilidade de experimentar a dor, quando a dor chega, com a mesma verdade com que experimenta a alegria. Essa incapacidade de não se admirar com o encanto grandioso que também mora na sutileza. Essa vontade de espalhar buquês de sorrisos por aí, porque os sensíveis, por mais que chorem de vez em quando, não deixam adormecer a idéia de um mundo que possa acordar sorrindo. Pra toda gente. Pra todo ser. Pra toda vida. Eu até já tentei ser diferente, por medo de doer, mas não tem jeito: só consigo ser igual a mim.

Ana Jácomo.

24 de outubro de 2010

Inversão


Alguns valores que eram presentes sem nenhum esforço se perderam. Viraram exigências que separam. Hoje desci na lama. Tirei meu salto e me enfiei no buraco que encontrei no caminho. Procurei feito quem procura uma barra de ouro no meio da lama. Gritei até fazer eco. Mas não me ouviram. Dei tapas na cara do meu jeito polido. Mas acho mesmo é que os efeitos das minhas atitudes meigas estão virando comédia da vida real. Agora tudo virou guerra. O que fluía agora precisa ser anotado e colocado na lista de espera. As vontades, os desejos não podem mais existir. A atenção que se exige é demais. O amor é pesado. Há tanto tempo você o conhece. Do dedinho do pé até o último fio de cabelo. E um dia longe já é um dia que sufoca. E parece que quanto mais se sabe do amor, mais se perde a harmonia. Porque o que era bonitinho agora é feio. O que era necessário, hoje é bobeira. E, de alguma forma, a preguiça de regar é maior que o impulso de se levantar. Hoje me disseram que amor é aquilo que ele faz. Mas eu digo que o amor é, além disso, aquilo que ele te deixa sonhar. Amor não poda. Não flui sozinho não. Ele respira, dá espaço, sorri e acolhe acompanhado. Amor é música que, mesmo com seus tons altos e baixos, não sai da sintonia. Amor, meu amigo, é pura arte.

Thais Viotto.

21 de outubro de 2010

Meu mudo, mudo amor


Quantos amores discretos já não passaram por essa Terra? Amores sem alardes, sem escândalos, sem cobiça. Esses devem ser os melhores amores: silenciosos. Quantos sorrisos não foram dados em secreto? Quantos dedos não se entrelaçaram sem que ninguém soubesse? Quantos "eu te amo" já não foram ditos sem que houvesse necessidade de divulgação? Um amor quietinho, quase mudo. Ah, sentimentos ocultos. Queria ser uma formiguinha. Passar o dia inteiro numa praça esperando o casal certeiro, aquele bem velhinho mas muito, muito guerreiro. E o mais importante: imperceptíveis de tão discretos. Os avistaria de mãos dadas, mudos, mas numa intensa sintonia. E logo gritaria: Ei, psiu, descobri vocês! Eles talvez se assustariam. Mas então eu explicaria a minha pressa para descobrir o quase perfeito amor. E passaria uma tarde inteira anotando fórmulas secretas e mudas para ser feliz. Simplesmente porque hoje me dei conta do seguinte: os amores que conheço são falados, estão quase estampados na primeira página do jornal. E eles são cheios de terceiras pessoas, brigas, ausências. Mas os amores quietinhos...Ah, os amores quietinhos. Eles amam muito, mas divulgam pouco. Eles sentem muito, mas conservam sem medir consequências. Quero meu amor assim. Que os nossos encontros sejam secretos. Mistério no ar. Quero ser eu, e que ele seja ele. Mas que o nós seja só nosso. De mais ninguém. Mudo.

Thais Viotto.